Imagens do purgatório
Ou como voltei a ler gibis e relembrei que até mestres como Alan Moore não são perfeitos
Comprei um tablet usado recentemente de um amigo e por isso voltei a ler quadrinhos como deveria. Tanto scans pirateados quanto gibis comprados digitalmente. Foi no momento certo, pois viajei por mais de 20 dias e dispensei o Kindle para me dedicar aos gibis como eles merecem.
O mercado de quadrinhos está bastante diversificado e não consigo acompanhar o ritmo. Meus autores preferidos — sou básico, sempre li principalmente Alan Moore e Grant Morrison por muitos anos, autores que mudaram minha vida — estão velhos e vários nomes de peso invadiram novamente o mercado e deixaram sua marca nas últimas duas décadas.
Ainda assim, li Cinema Purgatório, de Alan Moore e Kevin O’Neill, a dupla que nos deu a fantástica Liga Extraordinária. É esquisito, intenso e interessante, como quase tudo do barbudo. Mas também relembra coisas que me desagradam nos trabalhos dos últimos anos do Moore.
Os gibis relativamente mais recentes dele parecem mais preocupados em criar versões alternativas de outras obras do que em narrar. Um dos exemplos é Neonomicon e Providence, que revisitam os mitos de H. P. Lovecraft para uma nova geração. É intenso e têm bons momentos, mas não chega a ser uma obra-prima.
O resultado é bem diferente de Watchmen, para citar seu exemplo mais famoso, que faz uma autópsia de todo o gênero de super-heróis, enquanto tenta destruí-los — e indiretamente criou um novo gênero de histórias sombrias, que teve seu valor, mas não demorou a cansar. No meio de todas as referências, Moore e Dave Gibbons nos mergulharam em uma história de investigação e uma narrativa apocalíptica.
Cinema Purgatório não alcança esse equilíbrio delicado. Sua estrutura, contudo, permanece ousada. Uma mulher sem nome frequenta um cinema antigo — distante dos grandes shoppings e habitado por uma fauna peculiar de cinéfilos e excêntricos — e parece incapaz de sair dali. Resta-lhe assistir a filmes em sequência e, nos intervalos, interagir com os estranhos funcionários do local e ler uma revista de cinema intitulada Arrependimento nas Telas.
Mas os filmes na tela grande não são dos mais comuns. Personagens se percebem como atuando, o King Kong é narrado por um sujeito responsável pelo stop motion do gorilão, e super-heróis tornam a vida de seus inimigos um inferno de culpa.
Quando as subversões são boas, atingem a excelência, mas às vezes derrapam um pouco pelo excesso — como na história dos irmãos Warner. Os momentos ruins nos dão a impressão de que a arte visual é mero adereço e o texto é á única fonte de narrativa ali. Talvez porque maratonei a revista e a ideia era lê-la serializada, absorvendo lentamente cada história.
A estrutura da obra e seu clima de estranheza me lembrou o game Inscryption, onde estamos presos em uma sala assustadora jogando um game de cartas com uma entidade maligna que atende pelo nome de Leshy. Da mesma forma, percebemos que algo estranho está acontecendo, um jogo dentro do jogo.
Vencer Leshy em sua casa no meio da floresta não é a única coisa importante ali. É também como um purgatório, com suas regras e protagonistas próprios. Infelizmente, falar mais é estragar um pouco dos planos de Daniel Mullins, um desenvolvedor indie esquisito e dos mais interessantes, que fez meio mundo tentar desvendar um quebra-cabeça metaficcional inserido em um jogo chamado Pony Island — que, como o nome deixa parcialmente claro, é protagonizado por pôneis fofinhos… e o próprio Lúcifer.
A genialidade das duas obras está justamente em tornar a metaficção parte da loucura. Quando é genial, Moore não apenas comenta filmes, mas nos faz rememorar e acreditar no caráter destrutivo e maligno da própria Hollywood. É uma contraversão assustadora da própria história da mídia norte-americana, mas conhecer as referências é fundamental para apreciar tudo de fato.
Mullins é um pouco menos transgressor e situa seus comentários em universos autocontidos, sem dar a entender (será?!) que esse tipo de empreendimento bizarro está espalhado em toda a indústria de games.
Também li outros gibis que posso, ou não, resenhar com alguma carga de profundidade em futuras newsletters.
Minha Coisa Favorita é Monstro vol. 1: obra-prima de Emil Ferris, um drama histórico sobre os Estados Unidos, e que ainda alcançou o equilíbrio perfeito entre gibi sobre universos infantis e temas mais sérios e confessionais.
Dementia 21 vol 1 e 2: um mangá excelente de Shintaro Kago no melhor estilo bizarro “ero guro nansensu”, que mistura o terror, o grotesco e o nonsense para fazer críticas sociais à sociedade japonesa. Aqui, uma cuidadora de idosos se torna uma heroína improvável contra a vontade. Não achei que seria fenomenal, por sua simplicidade narrativa sempre direto ao ponto, mas é brilhante quase sempre.
A Pro: um garota de programa que também é heroína e serve de veículo para Garth Ennis mostrar que realmente esteve cansado por aquela época (2002) e não muito a fim de criar tramas desenvolvidas. Não vale seu dinheiro.
Aniquilador: um quadrinho bem mediano de Grant Morrison, que fala sobre o poder de criar histórias, além de pirações de ficção científica. O problema maior é que parece uma versão sem qualquer inspiração de Flex Mentallo ou Kid Eternidade.
Tetralogia Monstro: cyberpunk e memórias de uma Sarajevo destruída é realmente a receita de muita coisa que gosto, que ainda tem um roteiro e arte de primeira por Enki Bilal. Recomendo!
“Licença para Vender”
Desde adolescente, sou fã de filmes de 007. Herança do meu pai, que assistiu vários deles em sessões de cinema e também me ensinou a gostar de faroeste. O primeiro que vi foi a estreia de Roger Moore no papel do agente secreto, em Com 007, Viva e Deixe Morrer (1973), em uma sessão da tarde qualquer.
A mistura de barões da droga, tarot, black music, vodu e traquitanas tecnológicas era demais para qualquer adolescente. Também parecia pesado, algo que os filmes posteriores com Moore não seriam. O ator era mais canastrão do que Sean Connery, e entrou na franquia meio velho demais para estrelar qualquer cena de ação.
Foi com ele que a franquia experimentou seus momentos mais estranhos: a esquisitice de 007 contra Octopussy (1983), com viagens à Índia e palhaços que desarmam bombas atômicas na Alemanha, e a despedida 007 - Na Mira dos Assassinos (1985), em que vemos Christopher Walken como um magnata da tecnologia que quer causar um terremoto na Califórnia e destruir o Vale do Silício (olhando agora, torço pelo vilão).
James Bond sempre foi feito de altos e baixos, uma herança elegante das histórias pulp e do mundo exagerado da Guerra Fria. E sempre tentou ser ligeiramente futurista, com suas tecnologias e vilões fantasiosos. Talvez por isso se recusa a morrer e continua sendo a franquia mais longeva do cinema ocidental.
Recentemente, viu mais uns momentos de instabilidade. Seus produtores de longa data — os meio-irmãos Barbara Broccoli e Michael G. Wilson, que salvaram a franquia da morte quando produziram 007 contra GoldenEye (1995), após o fracasso dos excessivamente realistas filmes com Timothy Dalton — se viram pressionados pelo bilionário Jeff Bezos, que comprou o estúdio centenário MGM por US$ 8,5 bilhões e entrou de vez no negócio do cinema, essa arte antiga cheia de gente antiquada que pensa meio diferente de chefões bilionários de big techs.
O MGM era distribuidor de longa data da franquia 007, mas o controle criativo estava com a EON Productions, sob tutela da dupla de produtores, que resistia em transformar Bond em “conteúdo”. Os planos de Bezos eram um pesadelo criativo para Broccoli e Wilson: séries sobre Moneypenny e Felix Leiter, novos jogos, filmes lançados com menos espaçamento. Uma receita não muito diferente da Disney quando colocou os dedos em Star Wars e criou os piores filmes da franquia e séries só lembradas por personagens fofos e instagramáveis.
Segundo uma longa matéria de março do Hollywood Reporter, Bezos só conseguiu o que queria após uma série de atritos entre executivos da Amazon e a dupla — Broccoli chegou a chamar um chefão da Amazon de “idiota do caralho”.
As rusgas, que levaram a uma estagnação na franquia, foram resolvidas da única forma que Bezos consegue resolver algo: com dinheiro. Fontes afirmam que ele telefonou para um de seus executivos e disse: “Não me importa quanto custe, livrem-se dela [Barbara Broccoli]”.
Dizem que a negociação foi encerrada com um acordo de cerca de US$ 1 bilhão de dólares, o que mostra que a dupla de produtores é realmente excelente em negociações.
Após a resolução desse imbróglio bilionário, Bezos perguntou em redes sociais qual ator os fãs acham que deveria ser o próximo Bond e logo depois Denis Villeneuve foi anunciado como diretor do próximo filme da franquia, o que é a primeira boa notícia sobre o assunto desde que Daniel Craig se despediu do personagem.
A chegada de Villeneuve quebra outra barreira antiga da EON Production, que silenciosamente estabeleceu que a franquia Bond não seria um “filme de diretores”. Steven Spielberg já quis dirigir filmes da série e a resposta negativa o fez criar Indiana Jones. Quentin Tarantino publicamente deu a ideia de que queria dirigir um novo Cassino Royale, que seria em preto e branco e protagonizado por um Bond de luto, o que foi posto em prática, mas sem ele na cadeira de direção.
Mesmo com Villeneuve na direção — que já mostrou saber fazer filmes tensos de ação, como o excelente Sicario —, 007 ainda será um filmes de produtores, já que matérias afirmam que ele não terá controle sobre o corte final e que assinou contrato para apenas um filme.
Alguns artigos que li na viagem:
Vídeos curtos de IA mostram uma nova forma de humor, principalmente com esquetes que imitam entrevistas de rua. Agora, brasileiros criam conteúdos que imitam tais vídeos, em uma nova forma de conteúdo referencial.
Trump II anunciou a venda de um celular dourado que leva seu nome, e deveria ser uma bandeira de sua iniciativa MAGA. Mas o aparelho não pode levar o esperado selo “Made in USA” por motivos óbvios.
O YouTube continua a se firmar como o streaming definitivo, fazendo até a Netflix o encará-lo com inveja.
“Todo mundo está nas mídias sociais, e ainda assim esses aplicativos têm cada vez menos socialização.”
Uma pesquisa da Folha concluiu o que o nosso imaginário já apontava: transmissões de jogos do Brasileirão mostram mais anúncios de bets que bola rolando.
Para encerrar, por que não algumas imagens de carros autônomos da Waymo, subsidiária da Google, queimados durante os protestos anti-ICE em Los Angeles? O motivo parece ser uma atitude neo-ludita (no melhor dos sentidos, sempre), para evitar que as dezenas de câmeras de tais veículos sem motorista identifiquem quem estava nos protestos.
🔈 Ouvindo: All the Waters of the Earth Turn to Blood - The Body e Leshy's Theme - Inscryption OST